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quinta-feira, março 05, 2009

.ninguém

Já ninguém chora desalmadamente.

Um pensamento que me assustou há um tempo atrás.
Vinha eu descansada no meu lugar no avião, pronta para uma viagem de repouso (como todos os veículos deste género, também este teve um efeito soporífero em mim) quando um petiz se lembra de abrir as goelas com toda a força que podia.
ele chorava, ele esperneava, ele chorava, ele berrava, ele matava, ele era garganta, ele era veias, ele era tristeza, ele era gritos, ele era raiva, ele era sono.

No meio do silêncio incómodo e dos olhares de desagrado dos passageiros, reparei:
já ninguém chora desalmadamente.

o choro incomoda, assusta, afasta.

Os pais tentavam acalmar o miúdo de todas as maneiras possíveis, ocultar aquela infelicidade e raiva tremendas. O seu choro incomodava, feria a vidinha de cada um à volta daquele rapaz.

Olhares de desaprovação, de desagrado perante tanto sentimento exposto.

Já ninguém se expõe assim.

Já ninguém chora sem medo, sem aguentar, acalmar.

"É feio chorar."
"Só os meninos pequeninos choram, olha que feio a chorar."

Não é feio chorar.
Não é feio expressar o que dói lá dentro.

Não é feio chorar desalmadamente quando tudo por dentro foi destruído.
Não é feio lavar a cara de lágrimas que doem a cair.
Não é feio gritar quando apetece desistir.
Não é feio libertar tudo o que está na garganta a magoar.

Quando até se fabrica choro , quando as carpideiras são contratadas, quando nem um morto se consegue chorar desalmadamente em público.

Porque o choro dói a ver. Porque custa ouvir.
Porque toda a gente esconde a tristeza, porque soluça e esconde e reprime e guarda.
Para não incomodar o mundo em volta.
Para não os lembrar que eles também têm razões de choro. De agonia e tristeza.

Cada um protegido dentro de si.
Ninguém fala da vontade de chorar, de se libertar, daquela noite em que tudo se esvaiu em água e sal.

Já ninguém chora sem medo.

E é uma pena.


(Não é feio odiar dizer adeus.
Não é feio sentir o mundo desabar quando te vais embora.
Não é feio querer limpar o mundo em lágrimas quando te afastam de mim.
Não é feio.)